
Por: Maria Palma Teixeira | Lescorpsdansants.com
Estou estacionada em frente ao Estabelecimento Prisional do Linhó, no concelho de Cascais, enquanto aguardo sem sucesso que a chuva torrencial acalme. Vejo um edifício tipicamente do Estado Novo, com a inscrição “Cadeia Central”. Inaugurado em 1955 sob o nome Cadeia Central de Lisboa, o E.P. do Linhó é uma prisão de alta segurança e tem actualmente entre 490 e 500 reclusos, maioritariamente entre os 20 e os 30 anos, segundo me informa um guarda prisional. Venho assistir a uma aula do CORPOEMCADEIA, projecto de dança pensado e desenvolvido desde 2019 por Catarina Câmara, com o apoio da Companhia Olga Roriz e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais/Estabelecimento Prisional do Linhó. Quando entro finalmente no edifício, deixo os meus pertences, incluindo o guarda-chuva, e sigo caminho. Explicam-me que tenho de atravessar o pátio até à ala em frente. Aí aguardo mais um pouco e voltam a explicar-me que ainda preciso de atravessar outro pátio e que será na ala seguinte. Atravesso sob a chuva a passo apressado aqueles dois pátios de cimento, frios, rodeados de janelas gradeadas, desprovidos de qualquer elemento natural.
Há uns dias relia a frase de Phil Ochs, que dizia “in such ugly times, the only true form of protest is beauty” (‘em tempos tão feios, a única verdadeira forma de protesto é a beleza’). Acredito que a beleza pode ter um efeito avassalador e até reparador. Acredito que a beleza pode ser uma forma de incentivo à mudança. Não confundamos beleza com as coisas direitas, simétricas, certinhas, intocáveis. Há também beleza em sítios improváveis. Em Março, quando conversava com Catarina Câmara, antes do convite para assistir a esta aula, questionava se tinha sido um choque quando entrou no Linhó pela primeira vez, ao que me respondeu “foi um grande choque, mas é como tudo… Vais a um cenário pós-guerra, onde tudo está destruído e de repente vês uma flor a despontar do chão. E aquilo é brutal, é brutal. Aqui acontece o mesmo, eu estou naquele sítio horroroso, mas de repente termina uma aula em que percebo que estamos tocados, que fomos todos mobilizados”.
Catarina Câmara é mais conhecida pelo seu trabalho de bailarina na Companhia Olga Roriz, mas é também formada em Direito, Justiça Restaurativa e em Psicologia Gestalt e tem desenvolvido projectos vários nas áreas da educação e da intervenção social e comunitária. Quis conversar com a Catarina por causa de um espectáculo que me tinha ficado na cabeça desde 2022. Já tinha ouvido falar em projectos de ópera e de música nas prisões, mas ainda não conhecia projectos de dança nesse contexto, até então. A 10 de Julho de 2022, nove reclusos do Estabelecimento Prisional do Linhó subiam ao palco do Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian perante uma plateia esgotada, para apresentar A Minha História Não é Igual à Tua, com direcção artística de Olga Roriz. Não me saía da cabeça a imagem de Fábio, Jackson, Jeferson, Juvelino, Manuel, Nelson, Paulo, Rui e Wilson a entrarem no palco com um saco de plástico na mão e em silêncio medirem a olho nu, para depois desenharem a giz no chão, aquilo que seria o tamanho das suas celas. Nos bastidores, guardas prisionais aguardavam estes homens e rapazes, para que no final lá regressassem de facto. Os aplausos foram emotivos.
Não vamos glorificar estes homens, não vamos adornar este projecto, não vamos relativizar o porquê de estarem ali. A Catarina interessa-lhe outra coisa — mexer e repensar as hierarquias e os sistemas de justiça, encarar de frente o “lado sombra da vida”, “o que não é visível”, e o CORPOEMCADEIA trabalha tudo isso, envolvendo as suas áreas de formação e aquele que é no fundo, mais do que um propósito, um modo de estar inquieto. “Eu costumo dizer que isto não é Walt Disney… As pessoas procuram sempre histórias de superação e de redenção, o que está muito ligado à ideia de meritocracia, que me enerva bastante, porque a meritocracia não valoriza o mérito, valoriza circunstâncias e é preciso termos muito cuidado com este tipo de avaliações”.
Um dos participantes da primeira edição, disse numa entrevista ao Público, “quando vamos para ali, a prisão fica para trás. Quando estamos ali é como se estivéssemos na rua. A nossa mente não está dentro da cadeia” (entrevista disponível no vídeo abaixo). Cinco anos passaram desde o início do projecto, por onde já passaram mais de 120 reclusos, sensivelmente. As aulas e workshops decorrem numa antiga capela do E.P., no primeiro piso da segunda ala. Subo as escadas, com a advertência do guarda prisional para ter cuidado com a chuva que cai nas escadas e é então que entro na capela.
Enquanto troco umas breves palavras com Yonel Serrano, professor convidado de dança contemporânea, começam a entrar os participantes. Cumprimentam-me um a um, com um aperto de mão, e lembro-me das palavras de Catarina, umas semanas antes, “eu mesmo assim tenho sorte, trabalho num sítio que é privilegiado. É numa capela que já não está activa, o espaço é enorme, tem um altar ao fundo, umas cortinas de veludo, mas as janelas estão partidas, entra frio no inverno e pombas. É o único sítio no E.P. que não tem grades”.
Nesta aula conduzida por Yonel são convidados a assistir outros reclusos, para que possam conhecer e, caso pretendam, integrar também o projecto. Estão no altar/palco agora Ápio, Wilson, Tcherno, Rabie, Cláudio e Zé. Na aula, vemos não apenas as capacidades físicas e de mobilidade destes rapazes, mas também as suas qualidades artísticas. Yonel coloca no final uma música que me transporta para uma paisagem desértica, de largos horizontes, e é apresentada uma breve proposta coreográfica. Não contava com este momento, mas há também beleza em sítios improváveis.
Conta-se pelos dedos das mãos os projectos de dança nas prisões divulgados a nível mundial. CORPOEMCADEIA é um deles. Catarina Câmara fala-nos sobre o seu propósito, a dinâmica de trabalho e os planos para o futuro.

A dança é talvez das artes mais improváveis de entrarem num estabelecimento prisional. Dançar envolve vulnerabilidade, liberdade, expressão, coisas que estão mais limitadas ou que não associamos a este contexto. O que é que se trabalha no CORPOEMCADEIA?
Eu acho que mais do que ser sobre a dança nas prisões, é sobre a dança. Ou seja, é sobre a relação com o corpo e sobre a expressão do corpo, que é um dado marginal naquilo que são as atividades de uma sociedade, nomeadamente a dança contemporânea, que é uma parente pobre das artes e, portanto, nesse sentido, tens toda a razão, é improvável.
Há dois projectos na União Europeia para além do CORPOEMCADEIA, um em Itália e outro em Espanha, muito recente. É que num espaço como a prisão, onde o movimento não é um movimento espontâneo, livre, enfim, criativo, a dança acaba por parecer algo quase contraditório para com o sistema. Contraditório porque traz ao de cima sobretudo aquilo que é a singularidade do ser humano. Eu sou fã de Michel Foucault, um filósofo que escreveu sobre estas e outras questões, que falava muito sobre a ideia de sacudir as evidências. A prisão é uma evidência que tem de ser sacudida. Nós temos de pensar quais são os seus propósitos, bem como qual é a sua génese e o que é que ela cumpre. Creio que mais do que favorecer aquilo que é a paz e a segurança social, ela cumpre outro tipo de propósitos, que têm a ver com o acalmar uma espécie de ansiedade e temor sociais. Mas, na realidade, ela não é benéfica. Não quer dizer que não existam pessoas, obviamente, que temos que cuidar para que não façam mal, mas as pessoas que estão privadas da liberdade, na sua maioria, são pessoas com muito valor ou com valor e capazes de fazer imensas coisas, nomeadamente dançar.
Como é que as pessoas com quem tens trabalhado recebem este projecto?
Eu acho que recebem se calhar com a mesma estranheza e com a mesma curiosidade que as pessoas que estão cá fora. A questão não é estarem presos, a questão é serem homens e haver uma masculinidade a defender, mas esta masculinidade é transversal a uma série de pessoas… A questão do sistema patriarcal é muito aguda na prisão, mas não é aguda só nos reclusos, é aguda na expressão de todo o sistema prisional, desde o director geral das prisões até ao guarda. Há um sistema que é a cara do patriarcado, por isso encanta-me trabalhar lá, porque sinto que estou a bater no sítio certeiro. E a dança fá-lo quase com uma certa inimputabilidade. A linguagem da arte, sobretudo a linguagem da dança, tem algo de sinuoso, no sentido em que permite trabalhar estruturas muito profundas da relação interpessoal, da relação com o próprio corpo, e fá-lo quase sem imposição. Os participantes deste projecto são voluntários e aquilo que à partida poderia parecer uma coisa muito estranha é recebida em alguns momentos por essas pessoas com uma certa naturalidade.
De que forma?
Para já, estou a trabalhar com uma comunidade de pessoas racializadas. Isso tem alguma importância, porque a cultura africana — e estou a falar de portugueses, mas que de alguma forma, ao longo da sua vida, tiveram contacto com uma cultura africana — é uma cultura mais ou menos escolarizada, uma cultura menos zangada com o corpo. E portanto, quando eu entro no E.P. do Linhó e digo a esta malta “vamos tirar as meias, vamos sentir o ritmo”, há qualquer coisa que naturalmente acontece sem grande esforço. Evidentemente, há uma série de questões da dança que se colocam, e eu trabalho muito com contacto-improvisação (contact improvisation). Eu apresento um desafio, apresento de repente uma dança espontânea, em que os corpos se tocam, sentem o peso e se agarram, mas ao mesmo tempo, eu estou a proporcionar-lhes um território de descoberta e de gozo. E, se isso acontece, é mais fácil romper o medo e a vergonha.
Estas pessoas estão muito desejosas de sentir coisas novas, porque a prisão é um sítio que dessensibiliza, é um sítio que retira aquilo que é a individualidade de cada um, é altamente paternalista… Então, claro que dá imenso medo, eles estão desvitalizados, mas ao mesmo tempo existe uma alegria, que é a alegria do jogo e que é uma coisa que nos é própria, própria da criança.

Houve um choque em relação à tua expectativa, quando puseste pela primeira vez em prática o CORPOEMCADEIA e entraste no Linhó?
É um bocado difícil ouvires aqueles portões a bater e ainda por cima o Linhó é uma prisão altamente decadente, do ponto de vista daquilo que é a estrutura e o espaço. É horrível, suja e cheia de humidade. As condições são muito más mesmo, a esse nível é chocante. Eu própria já desenvolvi não sei quantas doenças. É muito interessante, porque ao longo destes anos a trabalhar no Linhó todas as semanas, o meu corpo também se ressente, tenho muito mais problemas relacionados com humidade agora, porque aquilo é terrível. Nós imaginamos e vemos nos filmes, mas ali tu entras e há um contacto com a realidade: está a chover a potes lá dentro, eles comem uma comida ‘de cão’, muitos deles estão fechados 22 horas por dia na cela… Há ratazanas no pátio…
Como é que conseguem desenvolver o CORPOEMCADEIA nessas condições?
Eu mesmo assim tenho sorte, trabalho num sítio que é privilegiado. É numa capela que já não está activa, o espaço é enorme, tem um altar ao fundo, umas cortinas de veludo, mas as janelas estão partidas, entra frio no inverno e pombas. Pus lá um linóleo e trabalhamos lá, mesmo com muito frio. Do ponto de vista do espaço, não é mau, é bonito, até.É o único sítio no E.P. que não tem grades. Mas sim, foi um grande choque. Ao mesmo tempo, quando as aulas são especiais, é como tudo… Tu vais um cenário pós-guerra, vês tudo destruído e de repente vês uma flor a despontar no chão. E aquilo é brutal, é brutal. Aqui acontece o mesmo. Eu estou naquele sítio horroroso, mas de repente temos uma aula em que sai tudo com o coração quente e percebes que estamos todos tocados, que fomos todos mobilizados. Vou dar o exemplo da última sessão, que foi incrível. Eu improviso imenso, e um dos exercícios foi dois a dois só fazerem perguntas. Um fazia uma pergunta e o outro respondia com uma pergunta e assim sucessivamente. Há, obviamente, uma dramaturgia psicológica. No final, pedi para cada um escolher uma pergunta que tivesse ficado a ressoar, apontei as perguntas todas em papéis diferentes, distribuí aleatoriamente e cada um ficou com uma pergunta. Depois pedi que respondessem a essa questão, como quisessem; porque havia uma que era “porque é que estás aqui?”, e não têm que dizer o crime, mas questionei “como é que vocês querem responder, sendo verdadeiros a essa pergunta?”. Foi um momento emocionante.
“Estas pessoas estão muito desejosas de sentir coisas novas, porque a prisão é um sítio que dessensibiliza, é um sítio que retira aquilo que é a individualidade de cada um.”
Catarina Câmara
Quando inicias o projecto, sabes quais são os crimes que cometeram?
Eu geralmente não sei, o E.P. não partilha, porque é sigiloso. O que acontece é que geralmente vêm dizer-me. Com este último grupo tem sido diferente, mas geralmente há um momento em que me dizem, “olha, eu fiz isto”. No fundo é quase como uma espécie de confirmação, “eu fiz isto. Continuas a aceitar-me?”. Eu não sou Madre Teresa de Calcutá dos reclusos, eles fizeram coisas más, porque não tinham capacidade para se regularem. Mas interessa que percebam que não tinham capacidade de regular e que têm responsabilidade de encontrar ferramentas para se regular, para não o voltarem a fazer; e que percebam que também são vítimas, são vítimas e são agressores e que se responsabilizem como um e como outro.
Costumo contar esta história. Há muito tempo, a primeira vez que eu fiquei sozinha com eles, na primeira edição, houve assim um clima estranho. Eu estava com 15 rapagões, sozinha…
… Não havia ninguém a acompanhar?
Eu prefiro que não estejam guardas. Então, a primeira vez em que ficámos sozinhos houve um silêncio estranho, porque eles achavam que eu poderia estar desconfortável por estar com eles, e então eu disse “olhem, rapazes, hoje vamos ficar sozinhos. Se alguém tiver medo de ficar sozinho comigo, por favor, vá-se embora”. Eu trabalho muito com o humor e com o afecto. A relação que eu estabeleço com eles é muito inspirada também na relação que eu tive com os meus formadores em Florença, que tem muito a ver com uma relação de intimidade partilhada. Mas claro, a barreira está lá sempre. No final, eu vou e eles ficam.
A primeira edição desenvolveu-se entre 2019 e 2022 e culminou na apresentação no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian?
Para mim, era essencial que este projecto não acabasse num clímax. Esta é uma questão que se coloca em muitos projectos com esta dimensão comunitária: há um foco muito grande naquilo que é o objecto artístico, o resultado. Nós temos que perceber, mesmo quando trabalhamos com pessoas em meio livre, que a arte mexe connosco e que nos faz mergulhar em dimensões difíceis da nossa existência e, por isso, estudei Psicoterapia Gestalt, mas já lá vou. Se eu já tenho esta atenção quando trabalho com os meus alunos na Companhia Olga Roriz ou noutros sítios, então, evidentemente, num meio onde as pessoas estão muito mais vulneráveis, onde estão sujeitos a relações de abandono, onde têm vidas traumáticas, é muito importante pensar este projecto na sua dimensão artística, mas também trabalhando o cariz social. Por isso, quando eu desenhei o CORPOEMCADEIA, pensei que o projecto não iria terminar no espectáculo. O espectáculo é um momento alto e é muito importante, porque permite que eles sejam vistos de outra forma e, ao perceberem isso, também se vêem de outra forma, mas ao mesmo tempo, se acabasse no palco, seria um fim muito brusco. Muitas vezes, aquilo que pode ser um evento altamente benéfico e super diferente na vida de alguém, se não for enquadrado com cuidado, pode ser contra-producente.
Aquilo que eu estabeleci é que haveria uma última fase e nessa fase os rapazes seriam convidados a fazer os seus próprios projectos. Ou seja, depois da experiência com muitos professores e depois do espectáculo, seriam convidados a desenvolver os seus solos e ao mesmo tempo a fazer uma ponte entre aquilo que é o projecto do CORPOEMCADEIA e a sua própria vida. Isto para perceberem como é que o processo criativo pode ser transportado para a sua vida, para que pudessem fazer este tipo de assimilação e metabolizar toda a experiência. Portanto, o projecto terminou depois desse momento, que foi muito curto, porque houve na altura greves com guardas e há sempre uma série de situações inesperadas, mas este baixar mais paulatinamente desta dimensão tão voraz foi muito importante.
“O CORPOEMCADEIA é política. Eu faço política.”
Catarina Câmara
Há participantes da primeira edição que tenham transitado para esta segunda? É um trabalho contínuo ou a ideia é proporcionar a experiência a outros reclusos?
Todos os que desejem transitar estão completamente à vontade e aconteceu com uma pessoa. Outros optaram por não continuar e muitos deles já saíram do E.P. e estão agora em situação de liberdade. Um deles, inclusivamente, acabou por fazer aqui um pequeno estágio. Tinha imensa capacidade e queria seguir o mundo da dança, mas não tinha dinheiro para ficar em Portugal e acabou por ir para França para trabalhar nas obras e estar mais perto da família. Eu costumo dizer que isto não é Walt Disney… As pessoas procuram sempre histórias de superação e de redenção, o que está muito ligado à ideia de meritocracia, que me enerva bastante, porque a meritocracia não valoriza o mérito, valoriza circunstâncias e é preciso termos muito cuidado com este tipo de avaliações.
É muito interessante, eu às vezes dizia “vamos sonhar, o que é que vocês querem ser?” e a fasquia de sonho era sempre muito baixa, “quero um trabalho qualquer em obras, em limpezas…”. Estas pessoas não se permitem sonhar. O que eu noto é que o perfil de vida destes rapazes é muito parecido: é o bairro, é o pai que não existe, é a mãe trabalha 24 horas por dia, são os pares, que são os miúdos da rua, é o tráfico começa a acontecer cedo e é um total abandono. Não quer dizer que seja sempre assim, por exemplo, no E.P. da Carregueira já se trata de outro tipo de ilícito criminal.
Estas pessoas são emocionalmente muito carentes, tiveram vidas muito complicadas, mas conseguem valorizar e estão disponíveis para aceitar o novo. Não é fácil e há pessoas que saem, mas quem fica é capaz de criar laços profundos de afecto, respeito e compromisso.

Quantos reclusos já participaram neste projecto?
Certamente mais de 120. Há quem fique temporadas, entre três a seis meses, outros fazem o projecto inteiro, outros acabam por desistir. Há uma espécie de triagem natural que às vezes tem a ver com a complexidade da logística das actividades na prisão. Por exemplo, eles têm a possibilidade de fazer algumas actividades, a escola e alguns trabalhos ou cursos, que são, na verdade, muito pouco aliciantes e o trabalho, que também é muito mal remunerado. Mas isso muitas vezes implica uma grande dificuldade em conciliar com o CORPOEMCADEIA e como eles têm alguma vantagem quando estão nessas atividades, porque lhes permite reduzir o tempo de pena e receber um dinheiro extra, acabam por optar por isso. Isto é algo por que estou a pugnar há imenso tempo, para que eles consigam conciliar o trabalho com o CORPOEMCADEIA, mas é muito complicado.
“A ideia do CORPOEMCADEIA é poder agir ou intervir ao nível das diferentes esferas do sistema de justiça.”
Catarina Câmara
Como é que se organiza as actividades do CORPOEMCADEIA e de que forma a psicoterapia Gestalt é integrada nelas? Ou há mesmo um acompanhamento dos participantes em paralelo?
Não é possível fazer alinhamento paralelo ou individual e a forma como a psicoterapia está neste projecto é muito mesclada, é quase uma terceira via, diria. A Psicoterapia Gestalt, pela sua especificidade e flexibilidade, permite-se a isso. Na primeira edição, tivemos várias psicólogas, que eram também psicoterapeutas Gestalt, mas não resultou, saltaram cinco. Depois acabámos por incluir na equipa um psicólogo, que apesar de não ser psicoterapeuta Gestalt, estava mais enquadrado. Se tu não tens essa essência em ti, não vale a pena. Eu fiz formação em Psicoterapia Gestalt, sou counselor Gestalt, e sou eu quem faz esse trabalho de fundo.Trabalho em parceria com o Instituto Gestalt de Florença e com o Azioni e Contaminazioni, que são parceiros basilares, nomeadamente o Paolo Quattrini, que foi e ainda é meu supervisor. Quando tenho questões problemáticas, exponho e dá-me sempre feedback. Muitas vezes temos uma psicoterapeuta Gestalt que vem a Lisboa e que colabora connosco, também italiana, porque eu identifico-me com a escola italiana.
E como é feito esse trabalho na prática?
Nós temos sessões técnicas de movimento, vamos chamar-lhes de prática técnica, em que há um artista convidado que pode estar entre um a seis meses envolvido e que faz a sua proposta de aula. Eu não lhe vou pedir que faça Gestalt, mas obviamente para mim é importante que este ser humano tenha certas características de relação, de sociabilidade… Eu não convido toda a gente para dar aulas no CORPOEMCADEIA. Depois, tento estar presente em todas as sessões e vou percebendo o que acontece, que questões emergem. Portanto, é muito sobre o aqui e o agora. No início e no final da aula há sempre um momento de agregação. Fazemos um círculo e eu meço a temperatura do grupo. O que é que ficou pendente? Como é que eles estão? Tentamos entender se houve coisas que surgiram, inquietudes… Às vezes peço para os participantes fecharem a aula com uma palavra ou com o gesto.
Depois temos as outras sessões,a que chamo de Práticas para a Liberdade, que têm uma vertente de exploração pessoal e interpessoal um pouco maior, sempre a partir de exercícios de corpo, de sensibilização. Por exemplo, na última aula fizemos um exercício de olhos vendados, para trabalhar sobre esta viagem interna e o que encontram nela. Às vezes trabalho a questão das emoções. Uso uma série de exercícios de improvisação para trabalhar estas dimensões emocionais e depois falamos sobre estes temas, para que eles próprios criem uma literacia emocional para a experiência artística, que é poderosíssima, porque nesta experiência eles acedem a partes suas adormecidas, desconhecidas, desejadas, temidas e na relação com o outro. Se nós ficamos apenas no artístico, está tudo bem, é incrível na mesma. Mas o que eu tento fazer é potenciar essa descoberta, o irmos um bocadinho mais longe.
O objectivo vai no sentido de trabalhar algo mais profundo para levar a uma transformação ou, enfim, a uma reabilitação?
Se eu me enquadrar naquilo que são os fins das penas, eu trabalho ao nível da ressocialização. Para haver uma ressocialização, o indivíduo tem que se inserir numa sociedade, mas primeiro tem que se inserir em si próprio, tem de se conhecer. O autoconhecimento é basilar. Às vezes, é só uma questão de dirigir uma sessão de uma certa forma. Vamos imaginar que estou a fazer um exercício de contacto-improvisação. A forma como eu dirijo o exercício é essencial, quando eu digo “reparem como é que vocês entram no espaço, como é quando saem da relação com o outro, custa? Ou não? Quem é que tem tendência a dominar?”. O que eu faço muitas vezes é criar uma espécie de grelha orgânica de questões para eles irem respondendo no decurso das atividades. São pistas para o auto-conhecimento, não podem ficar só no indizível, têm que ter uma expressão.

Há um momento específico de contacto com pessoas que estão em liberdade, longe da realidade da prisão e do seu contexto, que é no espectáculo. Este projecto pretende também contribuir para uma ideia mais humanizada, uma consciência colectiva do que é ser recluso?
Absolutamente. O CORPOEMCADEIA é política. Eu faço política. Eu faço política, porque acredito que a arte é capaz de fazer política melhor que a própria política, stricto sensu. Se um artista quer passar a vida toda no estúdio sozinho, a trabalhar tudo bem. Não acho que a arte tenha necessariamente de querer fazer política, mas ela faz. A arte é uma linguagem absolutamente necessária, que move estruturas que são ordenadas e previsíveis. Ela acorda aquilo que é o comum e permite ir mais longe. A dança é muito particular nisso. Numa sociedade onde a linguagem é sobretudo assertiva, mecânica, racional, produtiva e quantitativa, quando trazemos uma linguagem de corpo, que é sobre o ritmo, que é sobre transpiração, sobre o prazer, a alegria, que é, enfim, sobre as nossas vísceras, e trazemos isso para a vida e para o mundo, nós estamos a fazer uma afirmação política que é “o corpo interessa”. Nós, historicamente, como sociedade, temos uma herança platónica, uma herança católica, enfim, que deveríamos questionar. E, portanto, o CORPOEMCADEIA questiona a linguagem que privilegiamos na nossa sociedade, que é uma linguagem para o consumo. E, obviamente, também critica aquilo que é o sistema prisional e, sobretudo, o sistema de justiça. E, naturalmente, vou dizer aqui que a minha própria narrativa conta. Eu sou formada em Direito, em Dança e em Psicoterapia Gestalt.
Consegues, no fundo, juntar aqui as três áreas da tua formação…
Sim, por isso, respondendo à tua questão anterior, é um sim redondo, é para nós questionarmos, repensarmos os sistemas de autoridade e os nossos próprios sistemas de autoridade. Nós pensamos de cima para baixo, temos uma espécie de hierarquia das ideias sobre o corpo, sobre a intuição, sobre a emoção. A emoção é super importante. Só há emoção, depois existem emoções mais racionais e menos racionais. A razão também é uma emoção.
Nós estamos numa sociedade com um perfil de psicopatia muito grande, em que há uma espécie de frieza, em que aquele que é mais sério, o mais bem colocado, o que menos se deixa perturbar, é aquele que é mais reconhecido. E eu não estou aí… O meu discurso é mesmo outro.
Quando comecei o CORPOEMCADEIA, a ideia era trabalharmos com pessoas privadas da liberdade, mas fui-me dando conta de que o problema não está neles, o problema está à volta. Portanto, eu faço um trabalho paralelo de formação e de sensibilização, com muitas faculdades. Faço sessões e conferências sobre o CORPOEMCADEIA e agora estou a montar um programa na Faculdade de Direito, que é a mesma ideia, mas com alunos de Direito, aqueles que serão os futuros juristas e advogados. A ideia do CORPOEMCADEIA é poder agir ou intervir ao nível das diferentes esferas do sistema de justiçapara sensibilizar, humanizar e ressocializar, não só as pessoas privadas de liberdade, mas aquelas que não estão privadas da liberdade e que contribuem para uma privação da liberdade que não é benéfica para ninguém.
O projecto está, portanto, a abrir novas portas…
Nós estamos a abrir aqui o campo do CORPOEMCADEIA às práticas artísticas para a transformação social. Eu voltei à faculdade novamente para estudar Justiça Restaurativa, que é uma abordagem à Justiça que está prevista na nossa lei, para determinadas situações, que é não-punitiva e que permite, de facto, uma transformação muito mais de dentro para fora. A Justiça Restaurativa tem sido permanentemente negligenciada pelos nossos governos e neste momento eu, juntamente com outras pessoas na área do Direito, estamos a tentar implementar e trazer ao sistema prisional a Justiça Restaurativa, que também pode usar as artes para criar sistemas de resolução de conflito, com transformações para ambas as partes, agressor e vítima.
Que apoios tem o CORPOEMCADEIA?
O projecto teve apoio da PARTIS, da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG), na primeira edição. Nesta segunda edição, já não faz parte da PARTIS, mas continuam a apoiar-nos financeiramente para podermos levar mais longe o projecto e desenharmos um programa que é sobre Dança, Gestalt e Justiça Restaurativa. Neste momento estou focada em captar pessoas que me ajudem a pensar como é que criamos este programa para implementar nas prisões.
Pretendes estender a outros estabelecimentos prisionais, para além do E.P. do Linhó?
Sim e a centros educativos.
E o que é que tens aprendido com o CORPOEMCADEIA, a nível pessoal?
É uma pergunta que parece uma espécie de matrioska, porque é uma pergunta que me faz fazer perguntas. Há um apelo que tem a ver com uma espécie de refrão interior. Acho que todos nós temos os nossos refrões, não é? Podem ser obsessões ou podem ser coisas que nos acalmam. Não acredito muito na ideia de essência, mas há um tom que cada um de nós tem, uma cor interna, e eu sinto uma grande inquietude dentro de mim e um tropel, quando olho à minha volta e vejo como está e é o mundo. Fico triste e fico frustrada. Entendi, já do alto dos meus 48 anos, que a forma de me pacificar é estando lá, não é pensando a realidade, mas vivendo essa realidade. Para mim, pensar a sociedade e a vida implica um gesto de entrosamento na vida e este trabalho nas prisões faz-me sentir verdadeiramente ligada à vida. À vida na sua complexidade e porque para mim é brutal estar com pessoas, neste caso com homens que foram condenados a penas altas e descobrir neles um potencial incrível de beleza, de dignidade, isso também me apazigua e dá-me um sentido de missão, que é importante para mim.
Eu não sou uma pessoa de lugares, sou uma pessoa de pontes. Gosto de criar estas pontes para não me sentir fragmentada, porque tenho muitos amores na minha vida: a Dança, a Justiça – não o Direito, a Justiça – a Psicoterapia, o lado sombra da vida. Interessa-me tudo aquilo que tenha a ver com o inconsciente, com aquilo que é underground, que não é visível. Então, trabalhar nestes sítios-sombra faz-me sentir mais próxima do pulsar da minha própria essência, do pulsar da vida. Não é pêra doce, é duro, é extenuante, é frustrante. Obriga-me permanentemente a um exercício de regulação emocional, de paciência, de expectativa, perante o outro e perante mim. Acho que é sobretudo um trabalho onde eu posso evoluir como ser humano, onde eu que me desafio. E a vida é muito curta, nós estamos aqui para nos desafiarmos e para nos superarmos. E isso o CORPOEMCADEIA dá-me.
