Em resposta às declarações publicadas no jornal Público no dia 12 de julho de 2025, nas quais o Presidente do Sindicato Nacional de Guardas Prisionais afirmou que as danças são “inúteis”, o CORPOEMCADEIA veio apresentar o seu argumento em relação à inutilidade da dança e das artes em geral.
Leia a nossa resposta completa publicada no artigo “Danças inúteis – artigo de opinião no Público (22/07/2025)
“Danças inúteis” :: Público 22 de Julho de 2025
Carta de uma bailarina ao presidente do Sindicado Nacional do Corpo de Guardas Prisionais, em resposta às declarações proferidas ao PÚBLICO sobre a “inutilidade das danças” em contexto prisional.
No contexto da greve dos guardas prisionais e das suas reivindicações, Frederico Morais, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional, afirmou, em declarações ao PÚBLICO (12/7/2025), que as danças são inúteis e, por isso, devem ser erradicadas da prisão. As declarações referem-se ao projeto “Corpo em Cadeia”, uma iniciativa de práticas artísticas para a inclusão social com foco na dança, desenvolvida desde 2019 com o apoio da COMPANHIA OLGA RORIZ e da Fundação Calouste Gulbenkian, e sob a minha direção. Não podia concordar mais com a primeira premissa: a dança é uma atividade inútil. Aliás, já dizia Oscar Wilde: “Toda a arte é completamente inútil. Tão inútil quanto essencial.” Mas a inutilidade – ou inoperância – da arte, como descreve Giorgio Agamben, não é uma falência; e é precisamente aí que reside a sua verdadeira potência. A arte não serve um objetivo, não (se) presta, não produz, não obedece. Ao libertar a imaginação para outras performances epistemológicas, a arte instaura novas possibilidades de conhecimento e ação. Diz o artigo 42.º do Código Penal que a execução das penas visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável. E como se alcança este estado de graça social? Pergunto se a opção de manter indivíduos fechados numa cela durante 22 horas – ou mais – por anos a fio, “educados” pela TV, sem acesso a estímulos ou atividades que lhes recordem o seu potencial humano, pode realmente contribuir para que ajam de modo responsável. Medidas de “segurança” como as que o Frederico Morais propõe o que fazem é aumentar a taxa de suicídios entre a população prisional, a prevalência de doenças físicas e mentais, a violência contra guardas e entre reclusos, e uma degradação – por vezes irremediável – das habilidades sociais dos reclusos (e também dos guardas), o que compromete a paz e a segurança de todos. Inclusive a sua. Os projetos artísticos em contexto prisional funcionam como laboratórios sociais, onde a experiência estética e a ética teimam em andar algemadas uma à outra. A violência é um fluxo que arrasta tudo à sua volta (o crime, um segmento desse fluxo). Para interromper essa corrente desgovernada, há que mergulhar nas águas profundas dos nossos mitos, crenças e fantasias, que estão armazenadas na nossa black box: o corpo. Muitas das pessoas institucionalizadas em prisões (93% homens) apresentam baixos níveis de autoestima, representações fechadas de si próprias e uma visão limitada do seu potencial de ação no mundo. A experiência artística, e a dança contemporânea em particular, promove navegações descolonizadoras entre consciente e inconsciente, cria novas relações de sentido, descondicionado pensamentos rígidos e padrões de movimento obsoletos. Quando nos juntamos todas, às segundas e às quartas-feiras, na capela do Linhó, para dançar e falar sobre o que a dança nos faz, coisas inúteis acontecem: os participantes descobrem-se na sua expressão autêntica, enquanto desenvolvem um sentido de pertença e responsabilidade perante o coletivo. Experienciam uma série de qualidades de movimento – redondo, sttacatto, leve, pesado – que transcendem fixações identitárias e autorreferenciais, com frequência carregadas de julgamento. Isto é vital quando trabalhamos com performances de masculinidade hegemónicas (que são encorajadas em meio prisional) as quais estão na base de grande parte da violência e criminalidade. A dança é essa atividade inútil em que os corpos aprendem a coexistir no tempo e no espaço. Às vezes, propomos uníssonos rigorosos (o sonho de qualquer guarda) e que exigem repetição, foco, resiliência. Outras, convidamos à movimentação espontânea, à comunicação pelo toque, a composição em tempo real. Lançamos também inúteis desafios de composição coreográfica em que os participantes têm de criar em conjunto, explorando processos de participação e co-decisão numa lógica de horizontalidade, diálogo e apoio mútuo. Em qualquer dos casos, está sempre em causa a escuta e o respeito pelos limites e possibilidades dos corpos. Ensaiamos uma dança não heróica, que busca a cada momento a solução mais justa – e não a mais espetacular. O toque, que tantas vezes é experienciado em duas vias de sentido único, sexo e violência (e que eventualmente acabam por se cruzar), é agora conexão, suporte e limite. Nas tardes de dança do Linhó, os reclusos arriscam a expressão poética de sentimentos e emoções, como a raiva, o medo, a tristeza, a ternura e a vergonha. E isso conduz a outras inutilidades: autoestima, controlo da agressividade, regulação emocional. Mas o gesto mais belo e inútil da dança é a suspensão. Epoché. Suspender o movimento automático, as ideias fixas, a rigidez de uma só posição. Suspender até nos perderemos de nós próprios e abandonarmos voluntária, amorosamente, às forças criativas do encontro. Um dia, X. confessou-me que há muitos anos tinha matado um homem e partilhou as circunstâncias do crime. Contou que, enquanto esperava pela vítima à porta de casa, o cão da vítima apareceu (antes dela), meigo e peludo, a abanar a cauda e a pedir festas. X. ficou desconcertado com a presença do cão, havia algo que o desarmava, qualquer coisa que pedia para ceder. Então, X. enxotou o animal. Pouco depois, o homem chegou e o crime aconteceu. Quando terminou o relato, fez uma pausa longa e disse em voz baixa: “Tenho a certeza de que, se naquela altura eu dançasse, eu teria sido capaz de ouvir a voz do cão.”
Catarina Câmara
Direcção do projecto “Corpo em cadeia”
