CARTA ABERTA | Catarina Câmara

Carta aberta e convite para dançar ao Sr. Director Geral da Reinserção e Serviços Prisionais

Esta carta foi escrita ao Sr. Director Geral da Reinserção e Serviços Prisionais numa noite de insónia e lua em paciência quarto crescente.
É a resposta ao seu silêncio, relativamente ao pedido de autorização para saída pontual de elementos do CORPOEMCADEIA, com vista à participação artística no Fórum Anual das das Prisões (Lisboa, dias 10, 11 e 12 de Dezembro de 2021) e à sua ausência neste evento.
A carta foi-lhe enviada e lida publicamente.
Continuamos à espera que se liberte do silêncio.

Catarina Câmara

Carta aberta e convite para dançar ao Sr. Director Geral da Reinserção e Serviços Prisionais
Exmo. Sr. Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais 

Espero que esta carta o encontre inquieto e desassossegado. 
Sinal de que está de boa saúde. 
Eu venho, por este meio, convidá-lo para dançar. 
Não vale usar o argumento de que é pé de chumbo, de que não tem jeito para a dança. 
Eu percebo que o Sr. Director tenha receio de se expor, de fazer fraca figura. Respeito o seu medo.
O medo e a insegurança nunca nos abandonam, mas quando dançamos, o prazer de estarmos vivos e  abertos ao mundo dão a mão ao medo e então ele fica mais pequenino e doce e até lhe podemos pegar ao colo. 

Sr. Director, eu quero  muito dar-lhe a mão. 
Se o Sr. Director já foi criança, então já dançou. 
Dançar é lembrarmos-nos de que sabemos dançar. 
Mandela dizia: se queres conhecer uma nação visita as suas prisões.  
Isadora Duncan dizia: se te queres conhecer, visita a tua dança. 
Dançar devolve-nos as qualidades mais íntimas e reveladoras da nossa qualidade de ser: 
Como é que o Sr. Director combina o peso e a leveza?  
Como ocupa e desocupa o espaço? 
Como se deixa afectar pelo ritmo do outro?
Gosta de criar novos movimentos ou repete sempre a mesma coreografia? 
Quanto se deixa desequilibrar e quanto fica seguro no seu eixo? 
Sr. Director,  podemos passar uma vida inteira a fazer os mesmos gestos. Essa é a verdadeira morte. 

Eu acho que Sr Director não quer dançar comigo porque tem medo de me pisar. 
Se o sr. Director me olhar nos olhos e não desviar o olhar para os seus pés, o seu corpo saberá o que fazer, pois estaremos ligados pela intimidade da escuta. 
Seremos vulneráveis às forças criativas do encontro. 
Dançar é criar a partir da escuta. 
É poder partilhar o mesmo ar, o mesmo tempo, o mesmo centro de gravidade. 
É perceber que o centro não é um ponto fixo, é renunciar à rigidez e ineficácia de uma só posição. 
Um corpo que dança é um corpo verdadeiramente democrático, não decide de cima para baixo.  
A cabeça não vale mais do que o pé e um dedo mindinho pode dançar toda a história de uma humanidade. 
Um corpo que dança é expressão de um território de fronteiras liquidas, um todo interdependente e inter-relacional, em que as  partes comunicam e se reconhecem na sua insubstituível singularidade. 
Dançar é fazermos-nos mais presentes enquanto nos perdemos de nós mesmos e cedemos, voluntariamente, amorosamente, às forças plurais e emergentes perante as quais nos encontramos. 
Desnarcizificamo-nos. 
 
Sr. Director, eu quero muito vê-lo dançar. Não precisa de ser uma grande dança. Há danças mínimas, micro coreografias capazes de mover cidades e montanhas. 
As danças mais criativas são aquelas que nos permitem reconfigurar a realidade, olhar para as coisas como entidades vivas, em processo, e não imagens fixas, congeladas. 
Imagine o Sr Director que o código penal é uma árvore.
Que folhas pedem para cair ? O que deve caducar e o que deve amadurecer para que não se arranquem precocemente, sementes à vida. 
Se o Sr. Director dançar, vai perceber que o céu mora mesmo debaixo dos seus pés, 
e se se permitir escutar a música do chão,
saberá compreender melhor o silêncio das nuvens 
e das ideias imutáveis
que zunem sobre as nossas cabeças 
abstractamente civilizadas. 

É do chão que nascem os pássaros, os aviões e as estrelas. 
Constelações de estrelas que insistimos em fechar em gaiolas. 
É um desperdício energético, uma hecatombe ecológica, Sr Director. Tanto luz engaiolada. 
Mulheres, homens, Trans, crianças, velhos e novos, velhos com olhos de criança, crianças com olhos de velhos. 
Quem sabe se tudo isto não poderia ser evitado, se nos atrevêssemos a dançar um pouco mais. 

Sr. Director, nada disto é pessoal. Esta carta nem sequer é sobre si ou sobre mim. 
É de todos nós para todos nós. 
É sobre o esquecimento e a morte pela repetição. 
É sobre rasgar a inércia e vencer as leis de uma gravidade artificial. 
É sobre entender que um corpo só está vivo e funcional quando se reconhece e se festeja na sua multiplicidade e diversidade. 
É o convite para nos desempossarmos do que temos como certo.
É sobre o movimento que possibilita a  diferença, que cria a consciência, que permite a escolha, que se torna liberdade. 
É sobre derreter as grades com o calor da nossa luta. 
E é sobre a coragem....do encontro! 

E agora, vamos dançar.