CICLO CORPO CRIATIVO | Notas de (uma assistência de) Criação #22

Fotografia de Paula Arinto

6 de Junho 2022

Uma frase.

Hoje a Olga não pôde vir ao ensaio.

Sinto a responsabilidade de registar as impressões do dia, mas foge-me a objectividade, a qualidade cirúrgica com que Dona Olga talha o movimento dos corpos e das palavras.

Combinámos que eu iria fazer trabalho de voz com os rapazes, mergulhar nas frases, talvez apareçam outras coisas, canções. 

Apelo aflito à memória das aulas de voz e arrisco um aquecimento vocal.

Esvaziar o ar  Fazer circular o ar  Ressoar  Projectar Não gritar Sustentar  Atravessar paredes  O Ar 

SCHHHHH.

DA DE DI DO DU.

MA ME MI MO MU.

BRRRRRRRR BRRRRRR.

Que cada rapaz faça reluzir as suas frases como a ostra revela o segredo da sua pérola.

Uma íntima, ínfima totalidade engenhada pela passagem do tempo e pelos sedimentos da sorte e do azar. Uma frase esférica. Um acidente biográfico sem ângulos nem pontas soltas.

Vêem-me à memória os ensaios de O Paraíso, O Inferno ou mais recentemente o Insónia. Recordo a sensação de ser lançada às feras em alguns textos, sobretudo nas canções, de gaguejar nas pausas, de cair nos agudos, de tropeçar no meu timbre, de ter pesadelos com o refrão de uma canção, de sentir que não era capaz, de performar a minha insegurança com trejeitos dramáticos e insuportáveis e a Olga observando com circunspecta confiança, por detrás do caderno de notas mais bem organizado do mundo, dizendo:

 Deixa-te de  merdas. Eu sei que tu és capaz.

Lembro-me de a ouvir respirar profundamente quando a minha voz parecia imitar o choro de um bezerro a chamar pela mãe. E de não desistir de nós à primeira desafinação. Nem à segunda, nem à vigésima segunda. De se comover amiúde, de festejar com parcimónia os nossos progressos. Sem as gorduras da benevolência.

É essencial que pelo menos, uma vez na vida, alguém acredite que somos capazes de fazer algo que nem nos mais remotos sonhos nos atreveríamos a fazer. Mas que acredite em nós desde um lugar interessado, desde a  ganância da poesia, sem complacência, sem generosidade, sem a contaminação de uma empatia vulgar e conciliadora.

É essencial que pelo menos, uma vez na vida, alguém não se apiede pelas vitimas da orfandade amorosa e criativa, que não celebre cada pequena conquista com o fogo de artifício de um humanismo complacente e hiperexcitável.

Alguém que não se apoie no elogio fácil. Mas que saiba permanecer e reconhecer as nossas forças e limites com um fogo lento e antigo. Nos olhos. Na voz.

É preciso que pelo menos, uma vez na vida, alguém nos considere sempre e para sempre, responsáveis por produzir novas e inesperadas formas de beleza.

Sem vitimização, sem heroísmo. 

Com o deslumbrante pragmatismo de quem todos os dias trata a poesia por “tu”.

Fazemos um círculo, o Henda propõe que cada um de nós feche os olhos e invoque uma voz que nos inspire, uma voz que nos guie, que nos dê o sopro do som e da palavra.

São trazidas sobretudo vozes de mulheres, mães, avós, matriarcas mensageiras.

Elas deambulam pelo espaço da capela, desembaraçam os nós da garganta com os seus dedos grossos e amáveis.

Dizemos as frases, experimentamos o micro, escutamos a devolução da nossa voz no espaço sideral da capela, também os segredos que cada frase encerra.

Sinto que estávamos a precisar desta autópsia. Trazer a luz explicativa de cada oração. Que não tem de ser entendida desde razão, que pode emergir num caleidoscópio de imagens, desde a subtileza da respiração, em flashes de consciência.

Os rapazes partilham episódios marcantes, memórias, considerações, confissões, nós também.  E volta à baila o sentido e a função da prisão. Eterno transtorno.

A prisão. Coisas boas e coisas más ? Uma das perguntas dos inquéritos da Olga para esta criação. Não sabemos se constará do espetáculo, mas esteve nas suas malhas criativas.

Dou-me conta de como fico ligeiramente inquieta quando os rapazes enumeram as coisas positivas da prisão. Partilho isso com eles e descrevo como me faz sentir, invento razões que na verdade não posso jurar. A prisão ou o tempo de prisão?  Dou-me conta que há um movimento demasiado ordenado e sustentado dentro de mim, demasiado civilizado.

E isso que encontraste aqui não encontrarias noutro lugar, com menos sofrimento, com outro tipo de oportunidades?

Tropeço e caio do meu cavalo alado, civilizado. Mais à frente saberei escrever sobre esta sensação.

As perspetivas enlaçam-se, desembaraçam-se. Encontramos pontos comuns, ideias e emoções borbulham no jacuzzi prisional, há zonas frias, zonas quentes de entendimento. O que para mim é realmente fascinante, mais do que os conclusões, é perceber a massa de ar que se move entre os corpos e que se transforma em cada instante, o ajuste entre as respirações e as ideias, a dança do encontro, a possibilidade real de uma escuta íntima e desejada.

 Há um arquipélago humano interessante neste dia de sessões. Henda, Susana, Paula, Matilde, Andreia, Zé. É dia de fotos, de registo de vídeo. As lentes não intimidam, criam um pele confortável que protege o grupo. Todos falamos.

Falamos sobre a dificuldade em falar.

Alguém diz que não se sente confortável em dizer a frase.

A inevitabilidade do desconforto na mudança, no processo criativo.

 Os diferentes tipos de desconforto, as circunstâncias que moldam o desconforto.

O desconforto de alguém que há 11 anos vê o dia escurecer desde a mesma cela e  o desconforto da exposição ao novo, a situação absurda projectar a voz para um destinatário sem cara. Encandear-se com o novo.

Sim, é mais desconfortável projectar a voz, do que ver o sol pôr-se desde a cela.

Experimentamos. Uma e outra vez. Até que o desconforto do novo toca o prazer do novo. Até que a repetição sustente a segurança e a segurança sustente o prazer.

Outra frase.

Sou o B. Sou de Alfama. Gosto de fado e da cor preta.

E sabes cantar o fado ?

Corrijo. Gostas de cantar o fado ?

Gestos envergonhados, dramáticos, contraditórios, timidamente excessivos

 eu não consigo, eu não sei, eu não quero, fico nervoso, nunca, não me façam isso

Mas o corpo denuncia

A vibração da expectativa

A torsão de uma ansiedade curiosa

O nervo iluminado da  possibilidade

Toda uma estética da vergonha

desenvergonhada

Não temos tempo para isto. Não temos tempo para isto. Não temos tempo para isto.

Uma por mim. Outra pelo B. Outra pela Olga.

Deixa-te de merdas. Eu sei que tu consegues.

Vais cantar.

E então o B. pegou no micro

todos fizemos silêncio

E o fado foi cantado…

Catarina Câmara

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